Conto “O barulho misterioso”

O barulho misterioso 

Texto de César Obeid
Proibida a reprodução, em qualquer meio, sem a devida autorização do autor

 

Lembro bem quando neguei dormir na casa da minha avó. Aquela cama que, há poucos anos, tinha o melhor cheiro do mundo, de uma hora para outra começou a criar espinhos na lembrança.

Aos sábados, sempre aos sábados. Aquele barulho misterioso nunca mais foi embora. Sempre às 04h da manhã.

De sexta para sábado, ouvia apenas sons de sapos, grilos e jacus que passeiam pelo telhado. Sem medo. 

Na primeira vez em que ouvi o barulho misterioso, quase caí ao pular da cama. Olhei para a janela e só encontrei a escuridão do quintal, que pulsava alegria de dia. Liguei a lanterna do meu celular e nada consegui ver, apenas galhos que faziam a dança do vento. Não dormi mais. O barulho apareceu de novo, meu coração saltou à boca, e corri para o quarto da minha avó.

— Vó, que barulho é esse?
— Não sei, minha filha, eu não escuto nada.
— Mas é alto, vó! Parece um bicho batendo em algo. É estranho! Tenho medo, vó.
— Não ouço nada, filha. Vamos tomar café?
— Já?
— São quase 5 horas da manhã. Aqui, no sítio, já é hora de levantar. Vamos, minha filha, que o dia será longo.

E o barulho se repetiu por meses. Eu acordava com os olhos arregalados, não tinha coragem de sair para o quintal e corria para a cama da minha avó, que não sabia de nada sobre o misterioso ruído.

Após conviver com um buraco no estômago, decidi não dormir mais na sua casa. Mesmo sentindo falta do seu colo e do cheiro da sua cozinha de manhã, estava aliviada por não ter que conviver com o barulho sombrio. Aos sábados, sempre aos sábados.

Até que um dia, tudo mudou. Minha mãe disse que eu teria que dormir lá porque ela precisava viajar, e eu não poderia ficar sozinha.

E lá fui eu.

De dia, minha avó recebeu um grupo de pessoas para dançar. Ela é professora de dança circular. Para o jantar, fez um macarrão alho e óleo, com muito manjericão e tomate-cereja por cima. Contou histórias da sua vida, histórias do seu presente. Disse que vai levar um grupo de pessoas para fazer dança circular em Alter do Chão, no Pará. Minha avó rodou o mundo todo e ainda tem pique para andar muito. A receita? Como ela diz, é comer comida de verdade, comer pouco, dormir e dançar muito.

Eu como muito, nem sempre como frutas e vegetais, minhas noites de sono são péssimas e acordo com qualquer barulho. Minha avó não perguntou por que deixei de dormir lá nos últimos tempos. Acho que ela não liga para o passado, vive o presente de cabeça erguida.

Coloquei o alarme do celular para 03h50 da manhã, deixei uma lanterna potente carregada. Estava pronta para desvendar aquele mistério que ficou comigo anos e anos.

Quando acordei com o alarme do celular às 03h50, bebi água, testei a lanterna. Estava pronta. Agachei na janela do quarto e, exatamente às 4 horas da manhã, o barulho começou. Me arrepiei.

Não precisei voltar no tempo para sentir medo. Naquele começo de dia, estava aterrorizada. Joguei luz pelo quintal. Somente árvores e restos de uma fogueira que fiz com minha avó na noite anterior. Ouvi o barulho misterioso.

O que é isso? O que pode ser isso? Eu já não era uma menina. Agora poderia enfrentar. Abri a porta da cozinha, que dava para a parte do quintal de onde vinha o barulho.

Iluminei. Nada de novo vi. Coloquei a lanterna em cima do telhado. Um jacu estava parado, me olhando com seu olho vermelho. Estava imóvel. O tumulto seguia por trás das árvores. Só mais alguns passos, e eu poderia desvendar. 

Um alvoroço atrás fez com que eu parasse de andar. Era um jacu, atrás de mim. Como não o ouvi? Jacus, quando voam, são barulhentos demais. O barulho estranho vinha de trás das árvores. A lanterna não poderia desvendar; tinha que atravessar e ver.

Outro som à direita. Era um jacu, também imóvel. Seria a mesma ave? Agora iluminei e encontrei dezenas de jacus, todos quase imóveis, me olhando. Seus pescoços acompanhavam meus passos. Era como se fossem guardiões do barulho assustador.

Resolvi voltar e acordar minha avó. Ela também vai querer saber a origem desse mistério.

Ao entrar no seu quarto, a cama estava vazia. Para onde ela foi?

Ao sair pela porta da cozinha, a legião de jacus estava no chão, parada, dividida ao meio, fazendo uma estrada para eu passar. Não me lembro de ter visto jacus no chão. Sempre ficam nas árvores ou no muro.

Suspirei.

Ao passar pelas árvores, vi uma mulher dançando sozinha, mexendo o corpo com intensidade, fazendo sons com a boca. Era a minha avó.

Senti mais medo ao descobrir que era ela quem fazia o barulho.

Na hora, pensei: como ela fazia esse barulho se, quando eu era criança, estava na cama? Será que minha avó é assombrada?

Quando ela parou de se mexer, com a respiração ofegante, sorriu para mim.

Perguntei como podia fazer o barulho e estar na cama ao mesmo tempo.

Ela me explicou que, quando eu era criança, seu namorado fazia essa dança para ela, todo sábado, às 4h da manhã.

Questionei por que ela nunca me disse nada quando eu ia à sua cama, com medo. Ela pediu desculpas. Disse que minha mãe e minhas tias não aprovavam o namorado, que era muito mais novo do que ela, por isso ela silenciou. 

Deixando as lágrimas soltas, contou que ele havia morrido meses antes. Desde então, em sua homenagem, ela passou a fazer essa dança.

Todo sábado, às 04h da manhã.

Poema “misturas”

Poema: Misturas
Autor: César Obeid
Proibida a reprodução, em qualquer meio, sem autorização do autor

 

As misturas fazem parte
De tudo o que conhecemos,
Das florestas às ciências,
Misturando nós vivemos. 

Um paõzinho com manteiga,
O arroz com o feijão, 
São misturas que guardamos
Bem dentro do coração.

Quando o sol está se pondo
E a lua é bem-vinda,
O crepúsculo aparece,
A mistura é muito linda. 

Claro que os animais
Vão entrar na brincadeira,
Vamos já mesclar os bichos,
Com as rimas verdadeiras. 

As misturas improváveis
Já entraram nesses versos,
Se encantem com as mesclas
Desses bichos mais diversos. 

O que pode acontecer
Com essa combinação,
Misturar um cavalinho,
Com um tal camaleão? 

O cavalo corre e trota, 
Porém nunca muda cor. 
E o camaleão parado
Muda a cor com tal primor.

E a pergunta que eu faço,
Me responda por favor:
Será que o cavaleão,
Corre muito e muda a cor?

O coelho ama o pulo,
Rei do rio é o jacaré
Misturando esses dois,
Já deu o coelharé! 

Ou então é o jacarelho,
Que é o fruto da mistura, 
Como será que esse bicho
Nada e pula nas alturas?

Que engraçado é misturar
Tartaruga com gatinho,
Vira uma gataruga
Ou então um tartatinho?

Seja um ou seja outro,
Eu não sei no que vai dar,
Não sei se é um bicho ligeiro
Ou se anda devagar?

Não sei se a gataruga
Ou então o tartatinho,
Terá um corpo muito fofo
Ou um casco bem durinho. 

Imagine uma formiga,
Misturada a um elefante,
Vai dar uma elefiga
Ou então um formifante?

Elefiga ou formifante,
Mas que nome pitoresco,
Será que será um bicho,
Pequenino ou gigantesco?

Se for grande ou bem pequeno,
Vai amar a união,
Formifante ou elefiga
Vai ter grande o coração. 

As misturas desses bichos,
Sejam do mar ou floresta,
Dão aos versos, alegrias
E as rimas fazem festa!

Já chegou a sua vez
De criar e misturar,
Crie bichos bem malucos,
Com a arte de rimar. 

Na conta do futuro, um cordel sobre educação, de César Obeid

Na conta do futuro 

Ei, você, já se prepare

Que um cordel chegou agora.

Não vim só para rimar,

Vim aqui pra ser a aurora

Que ilumina o bate-papo

Que eu trago sem demora.

 

Se é cordel, tem que ter rimas

Com seus timbres encantados.

Se é cordel também não faltam

Versos bem metrificados

Pra que o embarque seja feito

Nos poemas ritmados.

 

Hoje o tema é educação

Que chegou no versejar.

Se há alguém bem cabisbaixo,

Logo vai se alegrar,

Pois cordel é assim mesmo,

Quando chega é pra encantar.

 

Claro que a educação

É pra dar conhecimento,

Mas quem vive pra ensinar

Sem forçar mostra talento.

Quem aprende é um beija-flor,

Que só quer dançar ao vento.

 

Quem ensina sempre aprende,

Quem aprende sempre ensina,

Quem opina se empodera,

Quem mais lê, mais se fascina,

A emoção faz palpitar,

E o saber sempre ilumina.

 

Ler não só para escrever,

Ler não só pra informação,

Ler não só para gramática,

Ler não só pra redação,

Ler pra desvendar o novo,

À luz da educação.

 

Fecho os olhos e o passado

Vem fazer-me uma visita.

Abro os olhos e eu sinto

O futuro que me agita.

E o presente é um presente

Que destrava a minha escrita.

 

Quando aprendo, eu sorrio,

Tudo posso realizar.

Se não fiz quando criança,

Hoje estou para estudar,

Que o tempo é só o tempo

Que chegou pra me ajudar.

 

Cada história nova lida,

Cada nova informação,

Eu acerto gentilmente

Nos alvos do coração.

E a mente vai se abrindo 

Pra além da imaginação.

 

As fronteiras são abertas,

Os limites superados.

Quero que todos escutem

Quais que são os meus recados.

Muitos passos eu já dei,

Muitos outros serão dados.

 

E assim não há limites

E não há comparação.

Mil caminhos são possíveis

Ao estar na educação.

Pra abrir as portas do mundo,

Tenho as chaves na minha mão.

 

Aprendi boquiaberto

Onde fica a Grã-Bretanha,

O que é um microrganismo,

Qual moeda é da Espanha

E a certeza de estar longe

Da ideia mais tacanha.

 

Me encantei com as ciências,

Abracei a filosofia. 

Hoje eu vejo a matemática,

Assim como a poesia,

Que os números aparecem

Como a rima que se cria.

 

Ninguém queira me enganar

Fabricando fake news.

Não mais caio na cilada

De dar força aos seus views.

Se mentir, caros senhores,

Serei crítico nos reviews.

 

“Saber” é a palavra-chave

Para a qual eu bato palma.

É a viagem para o novo,

Que agita e que acalma.

O esforço vale a pena,

Alimenta a minha alma.

 

Me empodero quando estudo,

Me empodero quando aprendo.

E se alguém disser que custa,

Tem razão, mas eu não vendo,

Pois não há preço que pague

Esta luz que em mim acendo.

 

Educar para o diverso

É querer saber bem mais,

Pra que a paz seja a cultura

Na cultura pela paz.

Sim, nós somos diferentes,

Mas direitos são iguais.

 

Meu cordel vai dividir

A palavra “educação”:

Quem “educa” não caduca

E não perde o refrão.

E a “ação” de quem aprende

É a total transformação.

 

A criança vai à escola,

O adulto também vai,

Uma avó também estuda,

Como um tio, madrinha ou pai.

Nesta conta do futuro,

Todos entram, ninguém sai.

Proibida a reprodução de trechos ou íntegra do poema sem expressa autorização do autor

A Xilogravura e a Literatura de Cordel

A Xilogravura e a Literatura de Cordel
por César Obeid
www.cesaobeid.com.br

A xilogravura é uma técnica milenar, na qual consiste em entalhar a madeira, entintá-la e, como em um carimbo, imprimir o desenho em um pedaço de papel. Essa arte está intimamente ligada à literatura de cordel, desde as primeiras décadas do século XX. 

Se observarmos a história da literatura de cordel no Brasil, veremos que a xilogravura, ou até mesmo suas versões modernas, como a “xilo” digital (onde os artistas usam programas de computador em vez de madeira, para criar imagens que parecem gravuras tradicionais), está presente em muitas obras de cordel. Isso inclui livros, folhetos, sites e muito mais.

Mas aqui está um detalhe importante: nem todos os cordéis usam essa técnica maravilhosa. Pode haver cordéis que não têm xilogravuras. Isso é totalmente aceitável pela tradição dos poetas populares do interior do Nordeste. 

Agora, quando você decide criar um cordel, lembre-se de que estamos falando de poesia, de poemas. Existem algumas regras que os cordelistas seguem:

Métrica: As métricas mais utilizadas são de 5, 7 ou 10 sílabas poéticas, o que dá musicalidade aos poemas. 

Rimas perfeitas: Todas as rimas precisam ter exatamente o mesmo som. No cordel, não usamos rimas que soam parecidas, como “cadeira” e “brincadeiras”, ou rimas que só se encaixam de acordo com o registro da fala, como “César” e “reza”.

Modalidades poéticas: Os tipos de poemas aceitos são os mesmos da cantoria de viola, uma tradição de poesia improvisada. 

Depois de criar com cuidado sua poesia, você pode escolher se deseja ou não adicionar ilustrações com xilogravura. Lembre-se de que, na literatura de cordel, o que realmente importa é a estruturação poética, da rica tradição nordestina. 

Lembramos que este texto foca na literatura de cordel do Nordeste do Brasil, não no cordel Ibérico, que tinha esse nome porque os folhetos eram pendurados em barbantes em feiras.

Do livro: Desafios de Cordel, de César Obeid. Editora FTD.
Poema: Um cordel sobre xilogravura. Modalidade: oitava

Chamam de xilogravura

Esta arte muito pura
Que há milênios já perdura
A gravura na madeira
Arte séria ou brincadeira
Porém nunca falta amor
Para o xilogravador
Ter a arte verdadeira. 

O artista que faz xilo
Ele vive tão tranquilo.
Na madeira o seu estilo
Num desenho faz brotar.
Com a goiva vai talhar
O desenho invertido
Mas nem tudo resolvido
A matriz falta entalhar.

(o poema tem mais duas estrofes)

Proibida a reprodução de trechos ou íntegra do poema sem a expressa autorização do autor.